lana caprina

Monday, August 22, 2005

«A paisagem é um estado de alma»

As cheias cobriram de água os olhos dos camponeses. Perdidas as margens, o rio fez-se mar - mar de aflições.
Mas ali do Mirante, sobranceiro à casa do Gaitinhas, a gente que veio da cidade, em automóveis, não via angústias, nem olhos rasos de água. Assentou binóculos sobre a lezíria, e as lentes aproximaram telhados de casas submersas, telheiros desmantelados, copas esguias de choupos como dedos de náufrago. Ao longe, dentro da capela bloqueada, a Senhora de Alcamé decerto bradava aos Céus.
- Que formidável espectáculo!
- E não querias tu vir...
- As águas ainda subirão mais? - perguntou alguém. Um homem daqueles sítios disse que sim. - O cabeço d'água é só depois de amanhã...
Ia-se a torre cimeira da capela. E o sino calado, impotente...
- Gostava de cá voltar, quando o rio estivesse mais cheio - confessou uma senhora que ouvira a resposta do homem.
O marido discordou. - Não vale a pena. Isto é sempre a mesma coisa...
Um bando de patos bravos alvoroçou olhares, formou nuvem que se alongava e sumia na neblina da manhã. No valado, que fora limite de margem e agora era carreiro sem destino, um renque de oliveiras emergia das águas, apenas, as copas glaucas.
- Olhem - disse uma voz juvenil -, aquelas oliveiras dão a impressão de que flutuam. E uma casita, além, meio afundada... Isto é triste, não é?
- Conforme... - retorquiu-lhe um rapaz magro, elegante. - Como disse Amiel, a paisagem é um estado de alma.
- Você, também, vê tudo com olhos de poeta.
- E porque não? Falta-nos agora o azul do rio: mas repare, temos ainda o azul do céu. E, quando a Primavera chegar, a alegria voltará aos campos cultivados.
Depois, virando-se para os companheiros, perguntou: - A propósito: vocês leram o artigo do Silveira? A explicação de que as cheias enriquecem as terras pareceu-me inteligente. Pena é que ele tenha um estilo tão fraco...
O caudal barrento do rio arrastava fardos de palha, animais e lágrimas. E o homem daqueles sítios, alheio às conversas, nada mais via do que luto à sua frente.
O klaxon de um automóvel repercutiu-se sobre a vila. Gente partia, outra chegava.
Agora era um senhor gordo, com máquina fotográfica a tiracolo, quem apreciava o panorama.
- Afinal, onde está a maravilha?
- É grandioso, há-de concordar.
- Ora, meu amigo. Isto é um lago, comparado com as inundações que eu vi na América. Aí, sim. Povoações arrasadas, campos totalmente devastados, centenas de mortos...
O amigo interrompeu a digressão. - Em todo o caso há prejuízos de milhares de contos...
- Sim, convenho que é um rombo, em lavoura pobre como a nossa.

SOEIRO PEREIRA GOMES, Esteiros [1941]

1 Comments:

  • At August 28, 2005 5:36 pm, Anonymous Anonymous said…

    Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!

    O que é a propriedade senão o roubo?

    Joseph

     

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