lana caprina

Thursday, August 04, 2005

O espanto perante a realidade (2)

O Bento não aparecia, ainda azafamado em iluminar condignamente as rexas da Torre. Gonçalo atirou a ponta do charuto, e com as mãos nas algibeiras do paletot, parou junto do miradouro, olhou vagamente para as estrelas. A névoa adelgaçara quase sumida - lumes mais vivos palpitavam no céu mais profundo. De lumes e céus descia essa sensação de infinidade, de eternidade, que penetra, como uma surpresa, nas almas desacostumadas da sua contemplação. Na alma de Gonçalo passou, muito fugidamente, o espanto dessas eternas imensidades sob que se agita, tão vaidosa da sua agitação, a rasteira, a sombria poeira humana. Longe, algum derradeiro foguete ainda lampejava, logo apagado na escuridão serena. As luzinhas sobre a capela de Veleda, sobre o arco de Santa Maria de Craquede, esmoreciam, já ralas. Todo o remoto rumor de musicatas se perdera, na mudez mais funda dos campos adormecidos. O dia de triunfo findava, breve como os luminares e os foguetes.

EÇA DE QUEIRÓS, A Ilustre Casa de Ramires [1894]

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